Por Wilame Prado
O velho varria a calçada pela manhã. A camisa branca do velho estava com todos os botões fechados, até em cima. Em frente à casa onde mora, ele varria meio que desesperadamente, mais apressado do que em outras manhãs corriqueiras.
Os homens iniciavam seu meio expediente a contragosto. Fazia um vento gelado. Era de manhã, era inverno. Mas quase ninguém estava de blusa. Tempo fechado. A construção precisava continuar. Portanto, eles martelavam, batiam, quebravam e não viam o tempo passar. Muitos demonstraram no semblante uma cara séria, um ar de preocupação e expectativa.
Um senhor de bermuda e camiseta de manga demonstrava, no peito, certo orgulho enquanto segurava a coleira do cachorro no passeio público. O dono pouco atentava, na verdade, à felicidade do cão em sua matinal escapada. Olhava para frente com um ar de esperança, e a espera pela conclusão das necessidades básicas de seu cão se tornou momento ideal para reflexões, cara de sonhador.
Na fila do supermercado, um rapaz concluiu que era uma manhã boa para pensar na Letícia, que há tanto tempo não via. Eram divertidas as manhãs ao lado dela, os dois se permitindo tomarem café preto e pão com ovo, queijo e tomate na padaria mais próxima, justamente em manhãs como aquelas. Mas pagou rapidamente o valor cobrado pela caixa e, como num passe de mágica, esqueceu-se completamente de Letícia.
Uma mãe descascava tranquilamente batatas na cozinha quando considerou aquela manhã como muito boa hora para ligar para a filha que mora em SP e que certamente estava prestes a ir num mercado ou numa feira. Ela nem se importou com as possibilidades de não encontrar a filha em casa. Ligou do mesmo jeito, mas não podia, naquela manhã, ficar pendurada por mais de trinta minutos ao telefone como de costume.
Manhã ideal, pensou Letícia, para abrir a janela do pequeno quarto, no quarto andar do prédio simples e popular, e ver um pouco a paisagem cinza, sentir um friozinho, uma vontade de beber chá e se lembrar de que, naquele momento – em vários momentos –, não há ninguém dentro daquele apartamento para lhe aquecer, para dividir uma bebida quente em manhãs frias como aquela, para simplesmente pedir que feche logo a janela, “está tão frio e você pode pegar um resfriado, menina”. Ao contrário do rapaz da fila do supermercado, nem passou por sua cabeça lembranças de manhãs como aquelas em que se permitiam ir a uma padaria mais próxima tomar café preto e comer pão com ovo, queijo e tomate.
Quem olhava para o velho varrendo inevitavelmente visualizava também enormes bandeiras penduradas na sacada do sobrado onde morava, sede para um bom e velho churrasco que começaria em instantes. Os homens da construção, um deles com boné verde e amarelo, não participariam da confraternização, mas por estarem trabalhando ao lado da casa do velho, daqui a pouco sentiriam cheiro de carne assada e teriam mais vontade ainda de voltar para casa após o fim do expediente. O homem do cachorrinho ostentava a 10 da Seleção Brasileira no peito no meio da rua, mas, dentro de alguns minutos, precisaria voltar para casa e iniciar os trabalhos com sal grosso e carne encomendada no açougue. O jovem da fila do supermercado aproveitava a promoção e comprava boa quantidade de cerveja em lata para abastecer o churrasco que começaria antes, seguiria durante e perduraria depois do jogo. A mãe que ligou para a filha descascava batatas justamente para a maionese que seria servida no churrasco do filho que tinha ido ao supermercado comprar cervejas.
Letícia, que mora na mesma cidade onde todos aqueles aproveitariam os embalos de uma copa do mundo para comemorarem com churrasco não sabem certamente o quê, se esqueceria, naquela manhã atípica de sábado, que era dia de jogo do Brasil. Ela ficaria espantada ao ouvir comemorações de vizinhos pelo primeiro gol da partida, de David Luiz, aos 18 minutos do primeiro tempo, momento em que pensou em até ligar a TV para finalmente começar a ver o jogo, optando, entretanto, por ficar debaixo das cobertas, no quarto, agora com a janela bem fechada.
*Crônica publicada terça-feira (1º) na coluna Crônico, do caderno Cultura (O Diário do Norte do Paraná)
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